Nicolas Jaar

Entendendo os Archivos de Radios Piedras, de Nicolas Jaar, direto da CDMX

Com seus mais de 10 anos de carreira, o DJ e produtor chileno Nicolas Jaar segue se reinventando ao lançar o projeto “Archivos de Radio Piedras”. Para além de um programa de rádio ou podcast, para além de um álbum, para além de uma instalação artística de experimentação sonora, para além de um concerto musical, o projeto apresenta um universo distópico fictício criado pelo artista – que também é escritor – através de narrativas multitemporais que trazem mensagens políticas latentes.

Foto: Tarcisio Boquady

Estivemos na Cidade do México para entender melhor tal universo, acompanhando de perto a estreia mundial deste projeto com direito a exposição de instalação sonora, show ao vivo e conferência com o artista durante o festival de arte e tecnologia El Aleph, que aconteceu no MUAC, Museo Universitario Arte Contemporáneo, CDMX. 

Foto: Tarcisio Boquady

Este universo latinofuturista criado por Jaar reflete sobre um futuro próximo no Chile em que ocorre um colapso nos sistemas estruturais da internet em nível mundial por uma ação direta de um coletivo anarquista chamado Las Ocho. O coletivo intervém como protesto contra a utilização das tecnologias e da inteligência artificial pela indústria capitalista e militar que manipula a humanidade conforme seus próprios interesses. 

Mais especificamente, um protesto contra a forma como as tecnologias são utilizadas de forma perversa contra povos que estão defendendo seus territórios. Uma conexão entre a Palestina e o Wallmapu, território mapuche que se estende do Chile à Argentina, é estabelecida como parte de uma grande rede de lutas territoriais, que seriam o grande mote para uma revolução global – uma curiosidade é que o Chile concentra a maior comunidade palestina fora do Oriente Médio. Desde o colapso, uma rede global de rádios clandestinas surge e o coletivo Las Ocho interfere nas transmissões para passar suas mensagens revolucionárias. 

Foto: Tarcisio Boquady

Nos 3 primeiros episódios dos “Archivos de Radio Piedras”, acompanhamos a narração da história de um menino que desapareceu no deserto chileno. A partir do 4º episódio, percebemos que se tratava apenas de uma primeira camada narrativa, pois essa história na verdade era um conto chamado “Desliz”, escrito por compositore (pronome neutro) Salinas Hasbún – personagem fictício criado por Jaar que homenageia suas duas avós Graciela Salinas y Miriam Hasbún. Os locutores estão apresentando um programa especial sobre Salinas Hasbún que desapareceu em 2022 ao realizar uma caminhada entre Santiago e Valparaíso, no Chile. Durante a retrospectiva de sua vida e obra, os locutores dão notícias sobre a situação revolucionária global. A partir disso, compreendemos o universo de ficção científica criado por Jaar, com forte caráter de fabulação documental por levantar questões políticas atuais.

Foto: Tarcisio Boquady 

O projeto iniciou em 2019 com o primeiro episódio sendo lançado exclusivamente como um podcast num grupo do Telegram. Sem muita divulgação ou explicação, apenas com links soltos nas suas redes sociais. No decorrer de 5 anos, 17 episódios foram postados no Telegram até que, em 2024, foi lançado apenas no Bandcamp, com 70% das vendas destinadas a projetos sociais da Palestina e do Wallmapu, o álbum contendo todos os episódios. O álbum ainda traz como bônus a trilha sonora original. As peças sonoras criadas para a rádio e as canções originais sob o pseudônimo Salinas Hasbún somam à tracklist totalizando 49 faixas. 

Foto: Tarcisio Boquady 

Na Cidade do México, o projeto ganhou uma forma única de ser apreciado: uma instalação sonora em que todos os 17 episódios estão remasterizados em 24 canais ocupando a sala de experimentação sonora do MUAC, podendo-se escutar em 360 graus, cada canal a partir de 24 alto falantes diferentes. Uma experiência única que ficará exposta até 22 de setembro de 2024, como parte do festival de arte e tecnologia El Aleph, sempre com duas sessões diárias – às 11h e às 14h30. Cada sessão com 3h30 de duração.

Foto: Tarcisio Boquady 

Para comemorar o lançamento do projeto, um show ao vivo e gratuito foi apresentado no dia 11 de maio, na Explanada de Espiga, área externa do MUAC. O espaço ficou lotado desde cedo, na passagem de som e contou com a participação de um tecladista e um percussionista acompanhando Nicolas Jaar, que encenou alguns textos de locução da Radio Piedras, antes de executarem algumas músicas da persona fictícia Salinas Hasbún, simulando o estúdio de transmissão da rádio.

Foto: Tarcisio Boquady 

A performance ao vivo se faz um adendo interessante ao projeto como um todo, pois é uma forma mais teatral para Nicolas Jaar apresentá-la ao público, principalmente por se tornar possível perceber como ele interpreta cada personagem, mostrando seu lado ator, expressando um pouco mais do processo criativo de Archivos de Rádio Piedras. E, claro, o desafio de traduzir os Archivos para um formato mais festivo para manter um grande público animado e engajado. Por essa razão, o show não ficou só nas faixas do novo álbum e apresentou outras canções de sua carreira, que há muito ele não tocava levando o público à loucura – muitos simplesmente se esbaldaram no espelho d’água para se refrescarem do calor de mais de 30° que fazia no dia. Quando músicas como “No”, “Time For Us” e “Mi Mujer” foram executadas, um verdadeiro encontro das facetas musicais de Nicolas Jaar dos últimos 10 anos foi apresentado, agradando tanto os fãs conectados pelo lado mais pop eletrônico quanto aos seguidores mais ligados aos projetos experimentais do artista. 

Foto: Tarcisio Boquady 

O próprio afirmou na conferência que, longe de qualquer rótulo musical, ele gosta de estar investigando e experimentando diferentes linguagens e expressividades, que não se apega a um determinado estilo. Tanto que ao lançar “Cenizas” e “Telas” – seus álbuns mais experimentais, ambos de 2020 – ele já não queria mais fazer algo no gênero novamente tão cedo. Cada projeto tem um momento específico para se manifestar, de acordo com suas inquietações. Seus questionamentos são suas principais motivações. Nico garante que sempre vai gostar de dançar, por acreditar que, para além de um mero escapismo da realidade, fazer o público dançar seria uma forma de estímulo e motivação para seguir em frente lidando e superando seus problemas. Inclusive, Nicolas Jaar confirmou que está trabalhando com sua banda Darkside e que um álbum “muito melhor”, segundo o próprio, será lançado. Datas de uma tour europeia foram confirmadas para o segundo semestre, então o lançamento está bem próximo. 

Nicolas Jaar compartilhou sua motivação para a criação de Radio Piedras, revelando que não queria apenas lançar músicas novas seguindo os padrões da indústria, se submetendo a sistemas de algoritmos. Ele sentiu necessidade de criar um contexto fictício e poético, como uma fantasia distópica e nada convencional para ser plataforma das músicas que havia composto: uma rádio clandestina fictícia como forma de expressar sua vontade artística disruptiva para além da música e potencializar vozes oprimidas, lembrando que a tecnologia deve ser usada a favor da humanidade e que demanda esforço para não sermos alienados por tantas inovações tecnológicas das quais não sabemos as reais intenções.

Nico ressalta que nesses 5 anos muitas vozes, conversas, oficinas, estudos, encontros, amizades, amores passaram por ele e somaram de alguma forma na obra, entendendo que não se trata de um trabalho meramente solo.

Foto: Tarcisio Boquady

Num momento em que a música eletrônica se consolida cada vez mais como uma indústria bilionária, em que produções, palcos, festivais e shows estão cada vez mais se aliando a inteligências artificiais, Jaar vem mostrar que a poesia, a luta por direitos e toda essa catalisação tecnológica futurista podem também se unir. E aqui, Nicolas Jaar mostra que música eletrônica pode ir muito além de um entretenimento escapista ultra tecnológico, mostrando ser possível criar uma fantasia justamente para nos ajudar a enxergar e lidar melhor com a realidade e potencializar suas lutas e manifestações e realizar transformações. 

Por Tarcísio Boquady

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