Por Claudia Assef
Foto de abertura: Gabriel Dia
Camarões, país da África ocidental que serviu como entreposto de escravos para os portugueses no século XVI, tem em comum com o Brasil, além do histórico com a escravidão, a paixão pelo futebol e pela música.
Um dos mais criativos craques da música de Camarões é o cantor, compositor e escritor Blick Bassy, que retornou ao Brasil como parte do elenco estrelado do C6 Festno último final de semana, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
“O Brasil e Camarões se conectam na musicalidade e também nas raízes da escravidão. Escuto música brasileira desde pequeno com meus pais e avós. Há uma musicalidade muito parecida em termos rítmicos”, diz o músico, nascido em 1974 na vila de Mintaba, no país de Baasa, sudoeste de Camarões.
Seu quarto álbum, “Madibá”, lançado hoje, 26, pelo selo francês InFiné Music, é cantado na língua Baasa, um dos 250 dialetos do país, que tem cerca de 230 grupos étnicos. Por conta de tanta diversidade cultural, Camarões também é conhecido pelo apelido “África em miniatura”.
Madíbá reúne 12 canções em formato de fábulas, tendo a água – ou a iminente falta dela – como tema central. O trabalho tem a voz angelical de Blick como marca registrada, acompanhada por guitarras delicadas, oníricas texturas de sintetizadores e arranjos ornamentais de sopros. Os cortes são límpidos e testemunham uma contemporaneidade africana que se embaralha com soul, folk e música eletrônica.
Madíbá significa “água” em Douala, outro dialeto local. Abordar o tema hídrico significa para ele a possibilidade de falar ao coração de todos. Nas músicas, ele explora os muitos aspectos sobre a água; da sua energia à escassez, até seu poder vital.
Sua música entrega um mix equilibrado entre música folclórica e contemporânea, trazendo suas influências declaradas de artistas como o camaroneses Eboa Lotin e Émile Kangue, passando por um shuffle de grandes medalhões de diferentes gêneros, de Marvin Gaye, James Blake, David Bowie, Prince até Jeff Buckley. Além desses artistas que agem como inspiração para Blick, a música eletrônica permeia sempre seu trabalho.
Collabs: de Disclosure a Lenine
Ao longo da carreira, que começou com a banda Macase quando ele tinha 22 anos, Blick lançou três álbuns solo (Léman, de 2009, Hongo Calling, de 2011, e 1958, de 2019), ganhou prêmios internacionais, fez collabs com artistas pop, como o duo de house music Disclosure e o cantor brasileiro Lenine, e se apresentou em dezenas de países. Para o Brasil, ele reserva um lugar especial no coração. Seu segundo disco, Hongo Calling, embora se inspire no jongo, tradicional ritmo da cultura Baasa, explora os vínculos entre a África e o Brasil através da geografia da escravidão.
“Fiquei curioso para entender como era esse ritmo, o hongo [jongo], no Brasil. Mas também fui atraído pela raiz da escravidão. Em todos os caminhos de Camarões até o Brasil encontramos o mesmo ritmo. Por isso decidi gravar o disco no Rio de Janeiro, onde morei por dois meses e pude trabalhar com artistas como Lenine [com quem gravou a música Você Fala Português]. Tenho uma conexão incrível com este país, que eu realmente amo”, declara.
Outro ponto em comum entre os dois países é a abundância de riquezas naturais, como petróleo, e o enorme abismo entre pobres e ricos. Esse gap, segundo Blick, pode ser diminuído através da educação e da cultura.
“Meus pais sempre fizeram questão que eu e meus irmãos tivéssemos tanto uma educação formal quanto o que se podia aprender nas aldeias, com os povos mais velhos, coisas como pescar e caçar. Nessa época não dava para entender o quão visionários eram meus pais. Agora eu consigo enxergar que minha carreira foi construída a partir dessa educação”, diz Blick, que construiu uma reputação sólida na França, onde vive há 13 anos.
No show no C6 Fest, que aconteceu dia 20 em São Paulo, no palco Tenda, Blick se concentrou nas músicas do novo álbum, “Madibá”. Em sua estadia no Brasil, ele adoraria colaborar com algum artista brasileiro, entre os quais ele cita Saulo (Banda Eva) e a atual Ministra da Cultura, Margareth Menezes. “Já toquei com eles no Carnaval em Salvador e adoraria poder gravar algo com os dois”, diz, Blick, que ainda se declara fã de Maria Gadú. “Mas estou aberto a artistas da nova geração também, porque realmente amo o Brasil”, finaliza.
Do canto Bolobo à house music
Nascido em 1974 na vila de Mintaba, no país de Baasa, sudoeste de Camarões, Blick Bassy cresceu em Yaoundé, a capital do país. Vindo de uma família numerosa, ele voltou para sua aldeia natal aos 10 anos e morou com os avós durante dois anos, tempo em que pôde se familiarizar com os costumes tradicionais, música, cultura e agricultura, além de atividades como a caça e a pesca. Lá, ele aprendeu sozinho música e os ritmos tradicionais, além do canto Bolobo e o Assiko, uma dança acompanhada de música tocada por guitarras e percussão. Esse rico aprendizado o incentivou a fundar, aos 22 anos, o grupo Macase, fazendo uma fusão de jazz, soul e cultura bantu, no qual ele atuou cantando e tocando percussão. O grupo teve sucesso em Camarões desde seu primeiro álbum, Etam (1996), seguido por Doulou (2002), coroado por uma turnê de quase 150 shows ao redor do mundo entre 2003 e 2004.
Blick Bassy, porém, decidiu voar por conta própria e seguir carreira solo com o álbum Léman (2009), gravado no estúdio de Salif Keita em Bamako. O álbum de estreia foi seguido por Hongo Calling, de 2011, um álbum que, embora se inspire no tradicional ritmo da cultura Baasa, explora os vínculos entre a África e o Brasil através da geografia da escravidão. Em 2015, o álbum Akö trouxe um cruzamento de blues e folk, revisitando a vida e o legado do bluesman Skip James, o que permitiu que Blick alcançasse um público mais amplo. Um sucesso que se confirmou com 1958 (2019), dedicado à memória da figura política e cultural de Ruben Um Nyobe, herói dos Camarões, resistência anticolonial executada pelas forças francesas em 1958. O álbum foi seguido por uma longa turnê mundial e coroado pelo Sacem World Music Grand Prize e premiado como Melhor Álbum (categoria África) no Songlines Awards.
Em 2016, Blick publicou seu primeiro romance, Le Moabi Cinéma (editora Gallimard), obra na fronteira do realismo e da fantasia, dedicada à juventude de seu país. O livro foi coroado com o Grand Prix Littéraire d’Afrique Noire.
Em 2019, colaborou com o trio de soul-jazz Roseaux, e, um ano depois, com o duo de house britânico Disclosure. Nos últimos dois anos, excursionou com o Bikutsi 3000, um espetáculo de música e dança dirigido por ele, encomendado pelo Museu Quai Branly de Paris, com apresentações na Alemanha, Austrália, Guiana Britânica e Estados Unidos.