Drum’N’Bass

Por Chico Cornejo

Foto de abertura: divulgação

Um dos gêneros da música eletrônica mais distintivos e inequivocamente inovadores a surgir no final do século passado, o drum and bass (ou drum’n’bass como também se lê por aí) sempre se pautou em unir mundos musicais dos mais diversos e amalgamá-los num sólida e veloz estrutura rítmica de extrema dançabilidade. Isso não é algo trivial, especialmente se atentarmos que tudo isso é feito a velocidades altas e sobre um espectro de frequências de elevada amplitude.

A complexidade da ampla gama de influências que o informam pode também ser ouvida em cada um de seus componentes e é diretamente ligada ao seu lugar de origem: a Londres do final dos anos oitenta e começo dos noventa. Um cadinho étnico dos mais fervidos e diversos do mundo, a cidade, que sempre foi um lugar de efervescência cultural, encontrava ali o zênite dos movimentos contraculturais propelidos pela juventude que marcaram as décadas anteriores.

 As raves estavam no auge de sua popularidade tanto como o lugar para se estar entre os jovens quanto algo a ser temido pelos pais e traziam consigo uma revolução comportamental em muito alimentada pelas substâncias alteradoras de consciência que grassavam por este cenário. Mas, essencialmente, o que a animava e a tornava única enquanto um movimento cultural era a música. Ela se nutria daquela mesma diversidade populacional que era o efeito colateral de séculos de colonialismo britânico e dava materialidade sonora ao multiculturalismo predominante no discurso social mais amplo.

Assim, tínhamos uma musicalidade enérgica e alegre, repleta de elementos que misturavam a rica herança caribenha tão presente no cotidiano londrino, a linguagem universal do hip hop e muito do que a house de Chicago e o techno de Detroit, as duas manifestações mais recentes do fascínio dos ingleses pela herança musical afro-americana, traziam de novo em termos de simplicidade e intensidade. Tudo cabia numa festa que tinha como seus princípios mais essenciais a comunhão na pista e o escapismo regida por um ambiente de inclusão e euforia. Cenas pululavam por várias localidades do Reino Unido e não tardou para que começassem a aparecer sonoridades específicas de cada região, como o techno mais encorpado e sombrio que começava a surgir nas áreas industriais decadentes de cidades como Sheffield, mais próximas do outro epicentro histórico do movimento das raves: Manchester. 

Os graves corpulentos se destacavam e a timbragem mais futurista que vinha diretamente do electrofunk que estava na raiz do hip hop se tornava mais proeminente Em meio a tudo isso, uma vertente mais radical em termos estéticos começava a ganhar notoriedade numa pequena festa animada por dois DJs criados na fértil cena londrina de jazz, funk e soul, o nome era Rage e depois do que o que ela iniciou em termos estéticos, nada mais seria o mesmo no panorama artístico inglês ou mundial. Fabio e Grooverider se conheceram no sul de Londres e não tardou para que descobrissem afinidades comuns nas preferências musicais que então se serviam de uma imensa variedade de permutações, mas tinham na experimentação tonal e na riqueza percussiva suas características mais peculiares. 

O repertório se valia muito do que era lançado em Nova York e era uma progressão quase natural, ainda que mais extrema, dos sons clássicos do Centro-Oeste norteamericano, especialmente o que saía por selos como Nu Groove, assim como o techno rave mais abrasivo e contundente que explodia nos Países Baixos.

 Cada set na Rage era uma aventura por paisagens ecléticas, mas tendo um horizonte aural bem definido por linhas de baixo que trafegavam pelo espectro das mais baixas frequências, batidas sincopadas e velozes e samples que recobriam a imensidão estilística da qual todos ali, DJs e dançarinos, foram criados. Claro que, simultaneamente, o ecletismo tão natural daqueles tempos se manifestava em outros locais, especialmente no bojo da sound system culture que os imigrantes jamaicanos tornaram parte indelével da paisagem sônica do país. Ali mesmo na capital, DJs como Ron conduziam seus experimentos rítmicos de outras formas, mas eram orientados pelo mesmo espírito aventureiro.

 Foi na forja que fundiu todos esses elementos tão díspares que surgiu o que se convencionou chamar de hardcore e projetos como Prodigy, Shades Of Rhythm, Shut Up and Dance, Altern8 e tantos outros começavam a tomada das posições nas paradas inglesas, configurando uma nova geração de artistas que saiu diretamente desse ecossistema.

 A planta baixa do que dali a pouco seria conhecido como drum and bass começou a ser desenhada a partir desses contornos gerais e logo inúmeros artistas surgiam diariamente, povoando o cenário e enriquecendo o repertório, expandindo o alcance de uma mensagem aural tão potente e potencialmente universal como a que ali começava a ser inventada. Não tardou para que focos aparecessem em locais de cenas artísticas tão vívidas como Bristol e Brighton e, consequentemente, ganhar o mundo. 

O primeiro posto avançado foi Nova York, uma urbe que em muito se assemelha àquela que gerou esse gênero inovador, algo que curiosamente se deu muito pelos esforços de um paulistano ali radicado chamado Soul Slinger, cuja loja Liquid Sky era um dos pontos focais dos modernos e ávidos dançarinos que então formavam a nação de club kids nova-iorquina. Em pouco tempo, se tornaria a trilha dos jovens que começavam a sair na vívida noite da Zona Leste de São Paulo e atrairia a atenção de músicos que então começavam a se estabelecer nacionalmente como Chico Science.

 A projeção da cena ao mainstream foi rápida e em muito tributária dos esforços e talentos de artistas polivalentes como Goldie e Roni Size, mas também através da trabalho de visionários como Rob Playford, Dan Donnelly e Bryan Gee, cujos respectivos selos Moving Shadow, Suburban Base e V Recordings, além do lendário Reinforced, encabeçado por ninguém menos que 4 Hero, ajudaram a definir a sonoridade urbana mais sofisticada da Londres dos anos noventa, com suas inúmeras iniciativas e inovações.

 E, ao chegar ao final do século XX, o drum and bass se encontrava numa posição privilegiada, chegando à sua primeira década como uma das forças mais arrojadas da música eletrônica e gozando de ampla popularidade pelo mundo todo. Sua viralidade era algo impressionante, ainda que bastante natural para uma plataforma rítmica tão flexível a ponto de ser compatível com praticamente tudo que jogassem em seu interior.

 O momento posterior foi um de inflexão e reflexão no qual as energias inventivas começavam a dissipar e sua potência transformadora perdia tração, culminando numa fase de relativa homogeneidade trazida por uma nova geração formada na cena e inspirada pelo mesmo repertório que deveriam inovar. A estagnação que se seguiu foi profunda e o mercado mais amplo da música eletrônica, sempre impiedoso com todos que sucumbem à inércia criativa, relegou o drum and bass a um lugar próximo do qual saíra para subvertê-lo duas décadas antes.

 Mas foi nesse lugar de refúgio mais autêntico, no âmago de sua identidade como algo desafiador para os corpos e mentes na pista, que seus aficionados e campeões persistiram e resistiram, gente como dBridge, Calibre, Paradox, Hazard, Subfocus, Shy FX e tantos outros, mantendo-o ainda mais verdadeiro em sua missão, ainda que não tão influente como já fora. 

Não obstante, seu vigor permanece irrefreável e, mesmo que mais infrequente em suas aparições no mainstream, o drum and bass continua a testar possibilidades estéticas e prover uma empolgante trilha para nossas mais intensas e tresloucadas noites de dança. Hoje em dia há estrelas da cena que lotam arenas pelo mundo e colaboram com grandes nomes do mundo pop como Andy C e Fresh, além da nossa mais valiosa prata da casa e um dos pioneiros do gênero no Brasil, DJ Marky. 

Ao fim e ao cabo, o essencial permanece: pulsando através de uma opulenta e diversificada cena mundial, feita de produtores e DJs de todas as partes que, cada um a seu modo, contribuem para essa riqueza aural que o distingue e dos demais gêneros mais convencionais da eletrônica.

Essa entrevista em video o DJ MARKY, fala bastante sobre o estilo

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