Por: Anderson Santiago e Alexandre Albini
Foto de abertura: Ariel Martini
Aguardadíssima desde o seu anúncio em setembro do ano passado, a primeira edição do festival holandês Dekmantel fora de Amsterdã foi um verdadeiro deleite para os ouvidos dos clubbers brasileiros. A festa diurna, que tomou o Jockey Club de São Paulo nos dias 4 e 5 de fevereiro, trouxe um eclético e estrelado line-up que foi capaz de fazer tribos diferentes dançarem ao som de batidas que não se restringiram somente ao house e ao techno.
Um dos destaques do Dekmantel, aliás, foi a certeza de que o casamento entre a música brasileira e a eletrônica vai muito bem, obrigado — que confirmem os gringos que compareceram em peso ao festival e ferveram muito ao som de brasilidades, tocadas recorrentemente nas cabines dos palcos menores, por artistas como Tahira e Fatnotronic. Caetano Veloso e toda a vibe da Tropicália dos anos 1970 sempre surgiam hora ou outra nos palcos da Gop Tun e da rádio Na Manteira: foram inúmeros momentos de puro deleite com o melhor da tropical house.
Foto: Gabriel Quintão
Além disso, ritmos africanos e latinos também ecoavam por todos os lados, tanto em sets como o de Brian Shimkovitz, do projeto Awesome Tapes from Africa, ou em performances incríveis de bandas brasucas como a jovem Bixiga 70 e a veterana Azymuth, com seu jazz que contagiou tanto o público presente, quanto os que acompanhavam através da transmissão feita pelo Boiler Room. Prova de que o Dekmantel é, certamente, um dos festivais eletrônicos mais cosmopolitas atualmente.
Com tantos bons nomes tocando ao mesmo tempo nos cinco palcos, o maior desafio (e que desafio, viu?) era escolher o que ver. No Selektors, o segundo maior stage, chamou a atenção a ousadia do coreano Hunee, que fez o público pirar com sua mistura de disco, afrobeats e house. Resultado: pista lotada do começo ao fim. No domingo, a maratona por lá também foi digna: começou com o house abrasileirado da dupla Selvagem e terminou com um dos melhores e mais pesados sets do festival inteiro, da dupla Ben UFO e Joy Orbison (ou aqui), que literalmente hipnotizava quem passava ali perto.
Foto: Gabriel Quintão / Ben UFO e Joy Orbison
Uma vista para o skyline paulistano de tirar o fôlego era o pano de fundo do main stage, que ostentava telões de LEDs enfileirados na horizontal, uma cabine alta que quase cobria os DJs e um soundsystem poderoso. Ambiente enxuto e perfeito para os headliners elevarem seus sets ao status de protagonistas, como assim fez a russa Nina Kraviz no primeiro dia. Seu techno ousado e cheio de frescor, que cada vez mais flerta com o trance, fez o esquenta para o show principal, de Jeff Mills.
Foto: Gabriel Quintão / Nina Kraviz
Uma lenda como Mills poderia apostar em qualquer set que seria respeitado no alto de seus 53 anos [confira nossa entrevista especial com ele]. Mas preferiu entregar ao público brasileiro o som de Detroit que ajudou a consagrar mundo afora: um techno firme, cru, com bpm lá em cima(assista aqui também). Nem a lama pós-chuva que tomou conta da pista foi capaz de tirar o brilho daquela noite. Pena que às 22h30 em ponto de sábado, quando Jeff entoava uma batida ao vivo que lembrava muito uma bateria de escola de samba (em versão techno, claro), o som foi desligado e o festival teve de ser encerrado.
Foto: Ariel Martini
À parte de polêmicas levantadas nas redes sociais logo da divulgação do line-up, vale dizer que a mulherada mandou muito bem nas partes diurna e noturna do festival. Além da superpoderosa Nina Kraviz, da qual já falamos, destacamos um trio que, no menor dos elogios, arrasou. A norte-americana Aurora Halal fez uma garotada animadíssima se hipnotizar com o seu live de techno viajante e atmosférico, e outras duas alemãs cheias de conceito representaram muito bem o seu país ao tirar vários gritinhos do público com um techno classudo, sombrio e duro: Lena Willikens e Helena Hauff (guardem esses nomes! – caso ainda não estejam com eles em seus podcasts ;).
Foto: Gabriel Quintão / Helena Hauff
O domingo começou mais suave no palco principal, com destaque ao suingue e à técnica de outro gênio de Michigan, Moodymann. O produtor promoveu uma viagem de batidas africanas enérgicas e contagiantes combinadas com o melhor do house e disco, entregando assim uma pista mais que animada para o produtor holandês Fatima Yamaha fazer um live melódico, original e desconcertante: quando soltou o hit “What a Girl To Do”, todo mundo foi à loucura. Para a nossa surpresa, o público comprou muito bem a vibe do holandês, que tocou também músicas de seu recém-lançado EP Araya.
Sempre coeso, John Talabot mandou diversas faixas incríveis de techno e house para preparar terreno para Nicolas Jaar encerrar o incrível Dekmantel São Paulo: o set certamente foi o mais dançante de todo o dia. Já de noite, o main stage era definitivo uma boate classuda, com música de altíssimo nível sendo tocada por um talento nato da Espanha (pena que não foi um live, Talabot!).
Foto: Gabriel Quintão / John Talabot
Antes de Nico entrar, sua equipe reformulou o palco e montou um jogo de luz intimista lindo de ver para o músico começar seu live com uma faixa atmosférica que durante quase 15 minutos hipnotizou quem estava sóbrio (e quem não estava também).
Foto: Ariel Martin
Passada a introdução quase apocalíptica, o show ganhou ainda mais corpo e alternou momentos dançantes e tranquilos, todos extremamente contemplativos, acompanhados por vocais, beats, teclados e saxofone tocados ao vivo pelo rapaz de 27 anos. Hits como “Space is Only Noise If You Can See” e “Mi Mujer” figuraram ao lado das canções “No” e “Three Sides of Nazareth”, de seu último disco, Sirens, lançado no fim de 2016. Jaar quebra barreiras em suas apresentações ao vivo, provando que é possível ser experimental, dançante e classudo sem ser incoerente. Das luzes à fumaça, da voz aos beats, tudo ali parece de encaixe perfeito, sem soar forçado ou ensaiado demais. Seria praticamente impossível terminar o festival com algo menos elegante do que esse show.
Foto: Ariel Martini / Nicolas Jaar
FABRIKETA:
Localizada em uma região icônica no Brás, em São Paulo, a Fabriketa é um espaço situado em uma antiga fábrica desativada, sem qualquer mudança estética ou reforma que o faça aparentar um aspecto menos “abandonado” — o que o torna extremamente convidativo. Mas a boa estrutura oferecida destoa dessa percepção inicial, tanto na questão de banheiros, como na capacidade de público e disposição das pistas.
Para o Dekmantel foram montados três palcos contemplando públicos diferentes (cerca de 2.500 pessoas no total). Na pista principal o techno pesado deu o tom com nomes como Veronica Vasicka, DVS1 e Ben Klock, que agradaram em cheio o público da noite, com mixagens rápidas e breaks curtos. Na pista externa nomes como Orpheu the Wizard, Vakula e Mike Servito esbanjaram técnica e repertório, com faixas mais próximas da disco music em vários momentos, que animaram aqueles que ainda seguiam na mesma vibe do evento diurno. Na pista interna, e talvez a mais descolada do festival, DJs como Cashu e Tessuto, além dos lives de Luisa Puterman, Exz e L_cio formaram um line totalmente brasileiro que embalou a noite com sonoridades mais introspectivas dentro do techno, que combinaram perfeitamente com o espaço em que o palco estava montado.
A noite de domingo — por se tratar de um after e não de uma festa com line-up divulgado anteriormente como a de sábado — reservou um ar de suspense sobre quais artistas iriam se apresentar. Com duas pistas funcionando a pleno vapor, o que vimos foram os ótimos B2B de Eric Duncan e Young Marco, John Talabot e Kornél Kovács, além de Call Super e Shanti Celeste. Recebendo um público de aproximadamente 1.200 pessoas, encerrou o festival como deveria ser: muita energia mesmo depois de uma maratona intensa que durou todo o final de semana.
Foto: Gabriel Quintão
DEKMANTEL VOLTA A SP EM 2018?
A organização do Dekmantel holandês, bem como o braço brasileiro do festival (o coletivo da Gop Tun) confirmaram por meio de suas redes sociais que em 2018 teremos uma nova edição, sim! Tomas Martojo, metade do Dekmantel Soundsystem e um dos donos do festival, disse em seu perfil: “Dekmantel SP: nós decolamos!” Já Caio Taborda, DJ que faz parte do núcleo Gop Tun, fez um agradecimento e um pequeno balanço da experiência que foi o evento: “Ainda em fase de recuperação depois de gabaritar o final de semana com quatro festas incríveis. Como foi bom ver tanta gente legal junta celebrando a vida da melhor forma possível! Obrigado a todo nosso time que trabalhou com tanto amor neste projeto, aos parceiros, ao Dekmantel, artistas e ao nosso público que fez estes dois dias mágicos com a gente. A ansiedade já começou para o Dekmantel Festival São Paulo 2018!”.
Foto: Gabriel Quintão / Caio T
O QUE FUNCIONOU
– A escolha do lugar: Perto de metrô e de pontos de ônibus, o Jockey Club de São Paulo foi uma locação certeira, perfeita para um festival como o Dekmantel (principalmente na pista UFO). Apesar de ter enfrentado pressão dos moradores e ser vítima de matérias da imprensa que julgaram erroneamente como mais um evento de música que geraria caos à região (isso levou toda a organização a adiantar o line-up inteiro em meia hora, de forma que terminasse às 22h30), o que nós vimos nos arredores foi calmaria e organização. Não havia quase nenhum cambista, o trânsito era praticamente zero e o caminho até o metrô mais próximo (cerca de 2 km da entrada) estava seguro e bem policiado.
– Quantidade de público: Um festival para cerca de cinco mil pessoas por dia com cinco palcos montados no Jockey foi um número ideal. Não havia nenhum perrengue para se locomover, além de poucas filas nos banheiros, nos caixas e na praça de alimentação. Tornou-se uma opção de festival com porte médio interessante para a cidade, como poucos que existem.
– Estrutura: Resumindo em uma palavra, a estrutura do Dekmantel São Paulo foi impecável. A distância entre os palcos era pequena, a locomoção fácil e as filas pequenas e suportáveis, quando até inexistentes. Os banheiros permaneceram utilizáveis durante todo o festival, o que é raro na maioria dos eventos. O soundsystem de todos os stages ofereciam som potente e cristalino, sem nenhuma interferência com as outras áreas. Sem contar a simpatia da organização na entrada: no sábado, quando começou a chover, a distribuição de capas de chuva foi imediata; no domingo, devido ao forte calor, foram ofertados protetor solar de forma gratuita. Sem contar os espaços para relaxar e descansar, como as várias espreguiçadeiras, escadarias e arquibancadas espalhadas pelo terreno.
– Cenografia: Enxuta, discreta e muito bonita, sem agredir ninguém com exposição exagerada de marcas ou patrocinadores.
O QUE PODERIA MELHORAR
– Sistema Cashless: Se é para ter um sistema que não envolva dinheiro para a consumação, este precisa ser feito via pulseira. No Dekmantel, a escolha foi oferecer um cartão magnético, que ainda tinha o custo inicial reembolsável posteriormente de R$ 5 ao consumido, que não facilitava em nada a vida dos clientes, pois é um elemento a mais que pode ser perdido. Além disso, para a devolução dos R$ 5 ao final do festival, as filas estavam absurdas, obviamente (já esperávamos por isso e desistimos de trocar!). Seria muito mais fácil implementar um sistema com pulseira, que evita a perda e também não gera taxas imediatas ao público.
– Cabine do DJ no main stage: Mesmo discreto, com LEDs bonitos e marcantes e soundsystem poderoso, o palco principal poderia ter ficado perfeito não fosse a altura da placa que quase cobria os DJs inteiros. Nós gostamos de ver os DJs tocarem e sempre torcemos para que eles estejam bem visíveis ao público
– Preço da água: Não temos nada a reclamar quanto ao preço e à qualidade dos alimentos oferecidos no festival. No entanto, o preço da água pegou muita gente desprevenido: R$ 7 por uma garrafa de 500 ml. Nós entendemos a necessidade e a importância das vendas do bar no orçamento de um evento desse porte, mas cremos que o acesso á água deve ser mais democrático. No EDC Brasil, por exemplo, havia uma tenda com água filtrada de graça. Um ponto positivo do bar era a oferta de opções de cerveja (duas, Stella Artois a R$ 12 e Hoegaarden a R$ 22) e a venda de caixinhas com água de coco Do Bem (R$ 12).