Por: Gabriela Loschi
Uma conversa com Jeff Mills é algo que vai além de compreensões singulares e binárias que muitas vezes estamos condicionados no dia a dia. Jeff consegue transmitir sua profundidade de pensamento e análise de fatos e pessoas em peças musicais únicas desde quando, como um bom pioneiro, começou a produzir techno em meados dos anos 80, fundando o coletivo revolucionário Underground Resistance. Detroit não é só seu berço, mas também a cidade que lhe forneceu os primeiros elementos para que as diversas facetas do techno fizessem sentido em sua vida e no mundo, e para que ele transitasse do hip hop para a música eletrônica.
The Wizard, ou O Mago, como ficou carinhosamente conhecido após começar a carreira utilizando esse nome, já produziu algumas milhares de tracks, mais de 40 álbuns e uma infinidade de sonoridades complexas que saem de seus estúdios igualmente complexos (um dos Estados Unidos e outro na Europa, em Paris) e de suas vivências diárias, além de gostar de explorar as mais diversas expressões artísticas. Suas apresentações são imprevisíveis, podendo apresentar sets extremamente energéticos ou totalmente intimistas, de acordo com o ambiente e a proposta – mas com a mesma concentração e assertividade.
Seu mais recente trabalho, Planets, está sendo construído há 10 anos e é provavelmente um dos estudos mais completos criados por Jeff e a sua curiosidade incessante acerca da formação do Universo e, de certa forma, da nossa existência nesse mundo. Sua contribuição para a música e a cena como um todo vai além de suas composições quase perfeitas e milimetricamente pensadas. Mills é uma mente criativa e inquieta, que busca analisar pessoas e seus gestos e reações para construir significados em mensagens expressas através da arte. A profundidade com que percebe o ambiente ao seu redor é o motor que move sua produção, a qual busca refinar através de estudos metódicos para composições cada vez mais assertivas.
Mills é um grande admirador das obras de Oscar Niemeyer, e chegou a criar um EP em “homenagem” ao Brasil, além de possuir um projeto para a nossa capital – onde ele precisaria morar aqui por um tempo. Sobre tudo isso e um oceano de outros assuntos e questionamentos, conversamos por Skype por pouco mais de 1h. Com a voz doce, firme e uma enorme paciência para explicar todos os seus pontos, Jeff nos concedeu esta entrevista relaxado e tranquilo, diretamente de seu estúdio em Miami. Confira:
HOUSE MAG – Oi Jeff! É um prazer falar contigo, obrigada por disponibilizar seu tempo. Primeiro vamos lá, você está em Miami agora, né? O que está fazendo aí?
JEFF MILLS – Sim, na Flórida. Peguei um mês inteiro de folga, então estou trabalhando [risos]. Não, brincadeira, estou tentando pegar leve, dar uma descansada.
HM – Essas pausas são importantes pro seu processo criativo, não é mesmo?
JM – Sim, janeiro é a melhor época do ano pra dar uma parada nas turnês, passar um tempo no estúdio, trabalhando em projetos para a primavera [norte-americana]. Então estou finalizando alguns álbuns e projetos.
HM – Por que você mudou o estúdio de Chicago para Miami?
JM – Alguns motivos pessoais, mas também por causa da estrutura do nosso negócio, porque o clima aqui é sempre o mesmo e é uma cidade mais internacional, mais pessoas passam por Miami do que por Chicago. Algumas de nossas ideias futuras estão relacionadas ao fato de tantas pessoas visitarem a cidade.
HM – Essas ideias futuras têm relação com o aniversário de 25 anos da Axis Records em 2017? O que estão planejando?
JM – Estamos fazendo um livro e coisas especiais, como o website, cujo radioshow de três horas já está no ar e é único. Ele analisa as músicas que eu criei e explica em detalhes os motivos pelos quais as fiz e os tratados pela música em primeiro lugar: o assunto de voar, planetas, viagens espaciais, viagens no tempo. Eu sempre trabalhei com filme e estamos planejando, nós próximos meses, criar uma situação similar explicando os trabalhos em vídeos da nossa label. A celebração oficial, eu suponho, do aniversário, será em setembro, e lançaremos quatro ou cinco álbuns. Talvez haja alguma ação artística, que não será uma comemoração, mas uma contribuição para a música eletrônica. Não posso entrar em detalhes, para não estragar a surpresa, mas estamos falando sobre isso pelos últimos três ou quatro anos e trabalhando para fazer acontecer. Essas são algumas das atividades nas quais estamos envolvidos, e também uma das razões por estarmos aqui, por termos mudamos nosso escritório de Chicago para Miami recentemente. Vamos fazer muitas coisas interessantes com música eletrônica aqui em Miami. E há trabalhos que fizemos no inverno para lançar agora.
HM – Vamos falar sobre esse projeto, que talvez seja o mais grandioso que você vem trabalhando há 10 anos, o Planets, inspirado no trabalho do Gustav Holst , “Planets”, do início do século passado. Como e quando começou essa ideia, exatamente? Já imaginava que duraria tanto tempo?
JM – Comecei a pensar seriamente nele lá por 2005, 2006 e antes disso eu já estava bastante ciente sobre o The Planets do Gustav Holst. Mas só depois da performance que fiz com minha orquestra no sul da França, em Montpellier, chamada Blue Potential, comecei a pensar mais seriamente em criar um projeto diferente em que houvesse o tema planetas, que abrangesse a eletrônica e a música clássica ao ponto de se tornarem indistinguíveis ao que estamos acostumados a ouvir — que a fusão entre os dois criasse um novo tipo de som.
Sim, eu já imaginava que seria um trabalho de anos. Comecei a pensar em como fazer isso funcionar, e a fazer esquetes para uma coleção de faixas que formassem um bom arranjo, para eu submeter a um arranjador, quando o encontrasse… e foi só por volta de 2010, 2011, que encontrei o arranjador que me possibilitasse materializar tudo isso. Logo depois veio o condutor, e passei anos tentando encontrar uma orquestra que pudesse tocar de uma maneira única. Uma vez que consegui reunir tudo, materializá-lo se tornou um grande obstáculo.
Comecei a investigar o que significaria ao ouvinte se eu conseguisse de fato materializá-lo. Diferentemente do Holst, em 1918, eu queria congregar todas, ou ao menos a maioria das descobertas que os humanos fizeram sobre os nove planetas [do nosso sistema solar], me baseando em dados científicos, e no que os cientistas e as pessoas em geral sabem sobre cada planeta, usando as informações para o desenho das estruturas das faixas. A partir daí, resolvi gravar música para os espaços que existem entre os planetas. Creio que daqui a 100 ou 200 anos os seres humanos vão poder descobrir ou detectar coisas que hoje entendemos como espaço vazio; que talvez haja algo similar à vida que simplesmente flutue no espaço, como animais nômades. Então eu gravei não apenas cada planeta, mas também o espaço entre eles, então muitas faixas chegaram a 18 minutos. Enfim, gravamos o projeto em 2015, em Porto, na Casa da Musica com a Orquestra Sinfônica de Porto, e desde então temos trabalhado duro para materializá-lo.
HM – Você sempre teve interesse por ciência espacial, mas durante toda essa jornada, quais foram os principais obstáculos em convergir música e ciência?
JM – A coisa mais complexa é lidar com som estéreo, em explicar as coisas através da escala, coisas que uma pessoa leiga sequer conseguiria imaginar — o tamanho dos planetas, os seus diâmetros, as suas massas, as suas densidades… Se eu tiver sorte… [pausa pra pensar] Eu não sei sequer se consigo chegar perto de, a partir do som, fazer alguém se sentir da mesma forma; de entender o quão enormes são essas coisas. Na prática eu provavelmente estarei muito aquém desse objetivo. Mas estou tentando usar o som para ao menos atrair atenção pros os nove planetas. Porém, não foi possível usar o som estéreo, e é por isso que gravamos com surround 5.1. Usamos, então, a tecnologia que temos pra chegar um pouquinho perto do objetivo, mas acho que ver esses planetas a olho nu, enxergar as grandes distâncias entre eles, é algo que os humanos, as pessoas comuns, nunca conseguiram compreender.
HM – Você mencionou ter criado um terceiro tipo de som, misturando o techno com a música clássica. É uma mistura extremamente interessante que particularmente sempre me interessou, mas são dois gêneros fortes e com muitos elementos distintos. Quais as principais dificuldades desse processo até encontrar o ponto de convergência?
JF – Cada um desses dois gêneros funcionam de modos particulares, temos os aspectos positivos e os negativos. Com a música clássica você tem um corpo de músicos tocando em conjunto, mas não exatamente juntos. E você tem pessoas tocando teclas e soprando instrumentos – o aspecto humano disso é muito diferente da música eletrônica, na qual o sinal de áudio estéreo é completamente preenchido. Não há ar na música eletrônica, então mixar esses dois estilos, especificamente, é difícil. É uma luta, e no fiml esse compromisso é o que gera esse terceiro tipo de som. Você tem uma orquestra que precisa atender certos parâmetro para sincronizarem com a drum machine ou com o sintetizador. E tem os devices eletrônicos agindo como o master clock, mas aberto à improvisação pra acompanhar os músicos. Por causa disso, você cria algo que não é nem clássico, nem eletrônico; você cria algo como uma máquina que tem essa compulsão por ser mais real — uma máquina que deseja ter uma vida. Eu não sei do que chamar isso, e a cada performance eu aprendo a melhorar esse processo, fazendo esse terceiro som se tornar mais definido.
Foto: João Messias
HM – Não é a primeira vez que você trabalha em apresentações com músicas clássicas. Quais foram as suas melhores performances — aquelas que melhor alcançaram esse ideal de equilíbrio que você está falando?
JM – Acho que as performances de Planets, que estamos tocando desde 2015. Quanto mais a executo, mais toma forma. E isso é possível porque, embora eu tenha feito todas as composições originais, os arranjos para orquestra e planejado os sintetizadores, eu também improviso praticamente no show inteiro. Então para cada apresentação, estou melhorando em materializar a minha parte e a estética geral. Os músicos também têm mais informação para trabalhar em relação às tracks, ou deixá-las próximas às composições originais.
Há outra performance com música clássica que eu faço, chamada Life in the outside world, que é uma compilação de tracks que fiz durante minha carreira, gravadas e arranjadas para uma orquestra. Tracks como The Bells, Sonic Destroyer, Amazon… estas performances também estão melhorando, e estou entendendo mais e mais como tocar junto com uma orquestra, encontrando o equilíbrio para que o ouvinte consiga escutar as partes eletrônicas e clássicas em conjunto, conseguindo distinguir mais rápido o que há de tão singular nessa conexão.
HM – Sobre toda essa sua pesquisa em ficção científica e os trabalhos que realiza ao redor… Você acredita que há uma energia enigmática no universo — que há algo a mais por aí?
JM – Eu acredito que há vidas em todos os planetas. Se não no planeta, então em sua volta. Assim como na Terra: nós humanos vivemos na sua superfície, então infelizmente não podemos ver toda a vida que existe ao redor ou dentro dela. Acredito que há coisas no espaço e nos planetas, tipo nós — mas elas não vivem na superfície. Quando vemos algo no céu, são elementos que não estão amarrados pela gravidade e que podem flutuar, voar, que provavelmente estão aqui há muito mais tempo que a gente. E acho que este seja o caso em todos os planetas do Sistema Solar.
HM – Existiriam dimensões diferentes, ou algo do tipo…?
JM – Primeiro precisamos olhar psara nossa definição do que é vida. Como os planetas têm vida em atividades vulcânicas em seu interior, por exemplo — como na Terra —, e acho que isso tem a capacidade de criar… um sistema, eu suponho. E que a vida, em algum nível, existe em todos eles. Talvez não pessoas, com braços e pernas, mas… Sim, de alguma forma, acredito que sim.
HM – Você acredita em Deus? Como acha que o Universo foi criado?
JM – Não, não acredito em Deus, e creio que o universo surgiu por coincidência. Acho que não existia nada antes do Big Bang, e nada propositalmente criou o Big Bang — que não deve ter sido o primeiro e único, talvez tenham outros antes dele. Os humanos também não foram os primeiros a povoar a Terra; acredito em outras formas de vida em outros tempos; em suma, entendo que existimos não por encomenda, mas por uma série de coincidências, e que cada um de nós tem algo dentro de si que é tipo um próprio Deus dentro de nós, se formos capazes de reconhecer isso.
Mas não acho que exista um controlador de tudo, alguém que esteja guiando. Se fosse este o caso, eu imaginaria que não seria apenas aqui, mas que também haveria um design por todo o tempo e espaço. É conveniente [acreditar em Deus], explicaria muita coisa, mas nós somos poeira cósmica; organismos do cosmo. Nós podemos sentar e conversar, mas isso não significa que somos a forma de vida mais avançada que exista, ou que já tenha existido. E não nos fazemos favor nenhum ao acreditar que somos a forma de vida mais avançada.
HM – O seu trabalho todo já nasceu futurístico, mas também está relacionado ao passado, por tudo isso o que já conversamos. Você já pensava nisso quando criou o Motorcity Institution Underground Resistance, com toda a sua importância para o momento político da época e o senso de realização pessoal e coletiva??
JM – Primeiramente, devo dizer que todos somos livres. Se você vai de fato compreender isso e lidar com suas consequências é outra questão, mas cada pessoa é livre. Nós nascemos livres, embora não nos digam isso. A partir daí, se tivermos sorte o suficiente de sempre compreender que as pessoas podem controlar seus corpos, suas mentes… É algo que ninguém pode tirar. E é isso que o Underground Resistance foi o tempo todo, guiado pela ideia de ser livre, de que você não pode ser controlado por ninguém — de que apenas o medo pode fazê-lo. Esse foi o elemento básico do UR, e tentamos dizê-lo através da música.
Tentamos usar a música como um dispositivo para lembrar as pessoas que se sentem confinadas, de que elas podem se libertar a qualquer momento. Que cada um de nós nasceu com o direito de ser livre. De não ser confinado ou controlado por ninguém ou por nada, sob nenhuma circunstância, em nenhum lugar ou momento. É nisso o que acredito e é o que tentamos fazer, e como isso se liga ao passado e ao futuro? Bem, o passado é provavelmente a coisa mais precisa que podemos usar para desenhar o futuro. Se estudarmos o passado, estaremos estudando pessoas, como elas são e agem em determinadas situações, você calcula e tem uma ideia mais acertada de como o futuro pode ser.
HM – E hoje estamos em um momento crítico, com novas lutas políticas pelo mundo, que geram sentimentos diferentes para serem materializados…
JM – O que está acontecendo agora nos Estados Unidos, por exemplo, não é algo novo; é algo que já vimos antes, e já vimos momentos muito piores na história, com pessoas piores assumindo lideranças neste país (risos), dizendo coisas muito piores, amparadas pela lei. As pessoas já passaram por tantas coisas horríveis por causa de ideologias bizarras, então nada disso que estamos vendo é novo, assim como já vimos essas situações sendo superadas. Olhar pra trás e estudar o passado é crucial. O futuro é fruto do conhecimento que adquirimos, e se não reconhecermos e lembrarmos do passado, cairemos nos mesmos problemas de outrora — e é exatamente isso que creio que está acontecendo neste país. As pessoas esqueceram, ou escolheram esquecer, como eram os Estados Unidos nos anos 30, 40 ou 50 – não era muito bom.
HM – É um fenômeno interessante que está acontecendo no Brasil também e outros países, esse conservadorismo. Você acha que sua música ajuda a enxergar isso? Porque em geral a maioria das pessoas não olha, de fato, para o passado… Alguém já chegou pra você: “Jeff, sua música me fez perceber ou pensar sobre isso aqui…”?
JM – Com certeza na maioria das minhas músicas há ideias por trás. Há elementos físicos também — por exemplo, se uma faixa se mistura, não começa da primeira batida, como se estivesse derretida e demorasse a ser reconhecida, sou eu tentando dizer que alguma situação já está aí há muito tempo, apenas estamos a reconhecendo agora. Se uma track começa desde o início, é porque quero que as pessoas saibam que somos todos iguais, desde o início. Isso quando você pode reconhecer uma track logo na primeira batida. Se for desmembrar como e por que produtores de música eletrônica lidam com o som, você entende que sempre há uma mensagem forte, às vezes política — e isso rola demais na música eletrônica.
Então estou sempre ciente, lendo notícias, algo que também me influencia muito além dos livros, observando as pessoas e vendo como elas respondem: o que dizem, o que não dizem, como reagem a determinadas situações, quando veem algo errado… Não é fácil e requer linguagem e alfabeto especiais para lidar com as máquinas, falar sobre o que está acontecendo no mundo real, mas acho que há, no universo da música eletrônica, uma caixa de ferramentas grande o suficiente para isso.
E haverá um período em que nós não vamos apenas admirar e gostar de música eletrônica, mas vamos precisar dela — um período em que os produtores vão usá-la para dizer coisas muito importantes, informações que serão necessárias às pessoas, assim como foi com o hip hop nos anos 70 e 80. Acho que esse momento ainda não chegou, mas é um gênero muito complexo e pode ser usado pra dizer coisas complexas, de maneiras subliminares. Ela é hipnótica, controladora, e acho que ainda não tivemos uma situação — ou devo dizer crise? — na qual seja necessário um estilo musical bastante complexo que possa falar por ela. Acho que infelizmente esse tempo chegará, e principalmente o techno se tornará um alvo fácil, por causa do seu apelo universal: é majoritariamente instrumental, mas pode ser bastante impactante. Acredito que o techno está por aí, e em algum momento nós vamos perceber que havia uma razão para estarmos fazendo-o; que nós realmente precisamos dele.
Foto: Jacob Khrist
HM – Você sente que o techno pode desempenhar esse papel revolucionário na cultura urbana ao redor do mundo, como fez em Detroit?
JM – Durante décadas nós conseguimos agrupar milhares de pessoas, semanalmente, por uma causa simples: escutar música. Sem caos, brigas, diferenças nos valores pessoais e políticos, crenças. Tudo é colocado de lado pela música. Esse tipo de interação deve ser usada em outras relações, não só em festas. Deve haver uma explicação pra todo esse efeito psicológico da música eletrônica nas pessoas. A forma como nós artistas lidamos com música, e o quão sérios e consistentes somos, isso passa para as pessoas que realmente nos seguem. Nós, produtores e DJs, temos a responsabilidade de fazer algo, de sermos ativos, de falarmos algo, pelo menos da maneira mínima.
HM – Muitas pessoas estão entrando na cena crescente do techno, e claro que os valores não são os mesmos para todos. Como você disse, tudo se dilui em função da música, mas você não acha que mesmo os valores básicos que iniciaram o techno e a cena clubber estão mudando? Como manter ou resgatar isso?
JM – Techno nasceu em um ninho comunal, música da comunidade. Houve tentativas de quebrar isso e se tornar uma festa para poucos, música para os exclusivos, mas nunca dura. Sempre volta a ser para as pessoas que tem o senso de veracidade e entendimento de como a realidade é. É um som para a comunidade, mas na verdade é sobre como uma pessoa sente, sua singularidade, sentimentos e emoções mais profundos. Foi por isso que eu desisti do hip hop nos anos 80 e mudei para a música eletrônica, porque é algo que tem tanta profundidade, algo que poderia crescer à medida em que eu ficasse mais velho. Nos anos 80 eu imaginei minha trajetória e com a música eletrônica eu não me sentiria fora do lugar mesmo com 90 ou 100 anos, eu teria ideias o suficiente para me manter conectado com o gênero musical. Sempre teve essa sensação de inclusão emanando da música, e acho que não é algo que poucas pessoas, poucas baladas, poucos lugares, ou poucas labels jamais controlaram.
O techno de Detroit nunca controlou a música eletrônica, Berlim nunca controlou. Sempre teve pessoas, e pedaços do mercado, se posicionando como líderes de tudo, ou como os melhores, mas isso nunca convenceu. O som sempre recebeu contribuições de muitas pessoas ao redor do mundo e por isso é tão forte, intenso. E aí volta para o ponto da liberdade, de ser livre. Acho que por isso que o techno surgiu, se tornou e se mantém e cresce e vai crescer ainda mais. É a máxima dos gêneros musicais.
HM – Ao mesmo tempo, com todo esse crescimento de público, acho que temos que olhar cada vez mais para a segurança, para evitar mortes, como essas no BPM Festival, fechamentos de clubs, ataques gratuitos (como você mesmo já sofreu). Como você acha que produtores, promoters e demais profissionais podem trabalhar para que as baladas e as festas se tornem um lugar mais seguro e organizado? Por que você acha que essas coisas acontecem? Como você se sente sobre isso?
JM – Isso vem sendo uma discussão nesses últimos meses entre eu e algumas pessoas sobre uma certa responsabilidade que promoters tem, quando organizam um evento e deixam pessoas entrarem pela porta em um espaço que eles estão controlando. Precisa existir uma reflexão sobre como manter essas pessoas seguras, e precisa existir mais cuidado e discussão sobre a atmosfera e as circunstâncias que podem ocorrer. Ignorar e chacoalhar a cabeça falando: ”ah que pena, eu espero que isso não aconteça com nós” não é o suficiente, sabe. Acho que precisa existir uma discussão, um diálogo entre organizadores de eventos e as festas, porque se eles não se comunicarem e não pensarem sobre isso, mantendo seus dedos cruzados, isso poderia muito bem destruir a cena ao ponto de as pessoas não se sentirem seguras para sair de casa e estar ao redor de tantas outras. Se a balada não é segura o suficiente para manter pessoas sem armas, talvez um DJ não se sinta seguro na frente de milhares de pessoas.
Isso pode facilmente e rapidamente mudar a atmosfera e eventualmente a música. Deixa eu te dar um exemplo: no começo dos anos 80, quando eu era um DJ de hip hop em Detroit, era uma cidade violenta e uma cena violenta, e a ideia de um tiroteio acontecendo em uma balada era relativamente comum. Então como DJ, eu tinha que estar preparado para que isso pudesse acontecer, e às vezes acontecia, e é uma das coisas mais caóticas que você pode imaginar. Imagina dois caras com armas correndo atrás de outros dentro de uma balada lotada com 2 mil pessoas, em um lugar escuro, e atirando no cara enquanto acertam outras crianças, entre 12 e 16 anos. Era um caos.
Esse tipo de coisa acontecia nos anos 80, então eu sei o quão rápido isso pode mudar a atmosfera e a impressão do que as baladas podem ser. Precisamos começar alguns esforços para sermos mais cuidadosos quando temos tantas pessoas em uma área aberta, e o que fazer no evento em caso de um incêndio, por exemplo, ou algo a mais. Estamos lidando com pessoas e eu sei que nem todas são as mesmas, e quando elas entram por aquela porta, podem trazer muito do que esta acontecendo no mundo naquela balada, então é um momento que pode definir um problema a longo termo para a nossa indústria, e quando a gente perde esses momentos em tentar fazer algo ser o melhor, é ai que falhamos na carreira.
HM – Você já foi para muitas direções, de ajudar a fundar um movimento a produzir trilha para filmes, sempre com a maior profundidade em cada trabalho. Ao mesmo tempo, existe uma certa áurea purista em algumas pessoas… isso pode atrapalhar e limitar a liberdade criativa e pessoal?
JM – Sim, sempre fui para muitas direções ao mesmo tempo, assim como a cena, e todas as direções são importantes. O lado mais comercial, o mais underground… não só uma coisa acima da outra. Sempre vai ser assim. Às vezes você vê bandeiras para dividir pessoas: ah, só uso vinyl ou cd, ou só ouço esse artista, e não aquele. São pessoas usando isso para se sentirem melhor do que outras. Mas sempre foi um gênero para todos: negro, branco, hetéro, gay, pobre, rico, e continua assim. Esse é o ponto mais forte. Isso não pode ser destruído ou marginalizado. Sempre seremos livres para escolher fazer música do jeito X ou Y. Posso fazer algo comercial na terça e na sexta ser o DJ mais underground que você já viu. Posso desistir e começar de novo. Tudo é aceitável nesse gênero.
HM – Falando sobre variedade e como o techno está crescendo, ao mesmo tempo em que ele abrange um significado muito amplo, ele pode ser tornar bem específico, como essa tendência crescente para o minimalismo e o techno romeno ao redor do mundo. Do outro lado temos produtores utilizando techno em produções de EDM. O que você acha disso tudo?
JF – Acho que a técnica era necessária, que a criação disso foi necessária, que o techno tinha que passar por muitas fronteiras para entender algo a mais. Essas subdivisões que aparecem de tempos em tempos, são sinais de que o gênero é saudável e uma forma de arte que está crescendo. Pessoas têm a sensação de que algo ainda não foi feito e precisam criar algo novo – e isso é fantástico. Então eles expandem essa ideia e é dai que drum and bass, jungle, trance music e minimal vêm. Eu acho que são todas necessárias, até as coisas mais ridículas são necessárias.
HM – O que você acha ridículo?
JM – Ah, eu não posso dar um exemplo.
HM – Eu to brincando (risos) seria mal educado.
JM – Não é minha posição apontar o dedo para alguém em específico, mas eu gostaria de dizer que tudo é necessário. Mesmo a música que você não gosta é necessária. Acho melhor se concentrar no fato de que eles criaram algo do nada para começar, e que eles escolheram música eletrônica para fazê-lo. Essa é a mensagem mais importante, porque se eles escolhessem algo diferente, perderíamos produtores em prospecto para o rap, por exemplo. Sempre acreditei que precisamos do maior número de produtores e ideias nesse gênero possível, mesmo os que são ruins. Podemos aprender muito de uma track ruim, sobre o que não fazer. Pode ser uma oportunidade de aprendizagem em diversos níveis.
Foto: Jacob Khrist
HM – Você poderia apontar o que você mais gosta da cena hoje em dia e o que não gosta?
JM – O que mais gosto é que, sem qualquer estrutura organizada para distribuir informação, tudo meio que acontece naturalmente. Ou seja, uma pessoa jovem, eu não sei como eles fazem, mas eles têm informação o suficiente por aí para aprender e decidir o que gostam na música eletrônica. E quando eles decidem, há um oceano de informação para que possam correr atrás dos seus interesses. Isso acontece naturalmente, sem escola, não existe uma escola do techno. Informação sobre DJs e como interagimos uns com os outros, e como lidamos com a música, parece acontecer naturalmente. Eu nunca dei uma aula sobre como ser um DJ para novos DJs, mas quando eu conheço eles, quando eu toco eles, de alguma maneira, de algum jeito, eles aprendem como tocar. Eu me impressiono muito com isso.
HM – Tem algo que te incomoda na indústria?
JF – Não tem muito o que eu não goste, porque não é uma questão de gostar ou não gostar. Desde o começo da minha carreira de DJ, sempre vai existir um grupo de pessoas que não gosta do que você faz, e outras pessoas que gostam. Você precisa aceitar as coisas como elas são. Algumas festas são incríveis para você e algumas são horríveis, é assim que é. Você pode ter um set fantástico em uma noite e na outra noite pode ser terrível, essa é somente a realidade. É difícil ser tão definitivo nessa indústria porque você está lidando com pessoas e é uma forma de arte tão sugestiva que é indefinível. Você não pode falar que você ama algo e que aquilo é o melhor, ou que esse é DJ é o n.1, que essa é a balada n.1, não é possível.
As pessoas estão fazendo isso, porque elas têm motivos políticos, mas a verdade é que as mentes das pessoas mudam o tempo todo. A balada que diz ser a melhor balada na terça feira, pode ser a pior balada na quinta, por causa da fluidez das pessoas. Então é uma indústria de nuances, e é difícil de definir qualquer faceta da mesma. Desculpa voltar sobre o assunto de ser livre, mas é por causa disso e do jeito que é. Você pode fazer e o que você que ou precisa, a qualquer hora.
HM – Poderíamos passar mais de 5 horas conversando e mesmo assim não chegaríamos perto de cobrir todo o seu histórico, que contempla mais de 40 álbuns e milhares de tracks, além dos 12`. Então vou deixar para você: quais projetos em sua carreira foram os mais importantes e significativos?
JM – Não sei se é possível apontar algo especifico, pois não olho assim para a minha carreira. É um coletivo de coisas. Uma carreira de sucesso consiste de muitas coisas: álbuns, se manter ativo em performances, aproveitar oportunidades de criar coisas diferentes, de deixar as pessoas saberem que você tem a capacidade de fazer isso e aquilo. Consiste em mostrar, e não só falar sobre coisas, consiste de demostrar foco e, também, de estar aberto o suficiente para poder aprender coisas novas. É difícil, eu não posso apontar para um álbum, não posso apontar para algo em particular…
HM – Você tem alguns favoritos?
JM – Sim, eu tenho favoritos, mas eu não posso falar, porque a partir do momento que eu fizer isso, eles não serão mais tão especiais. Tem coisas em tracks que eu nunca poderia refazer ou definir, mesmo se a minha vida dependesse disso, eu não sei como eu fiz, mas eu fiz. Algumas dessas coisas são bem especiais, talvez remetam a outras coisas, projetos inteiros, como um túnel do tempo, uma viagem pelo tempo. Coisas que realmente me fazem pensar às vezes sobre pegar direções completamente diferentes.
HM – Você teria algum exemplo disso?
JM – Eu estava fazendo residências no Japão por uns cinco anos seguidos. Estava progredindo e avançando mais e mais em cada residência, até que percebi que as pessoas meio que se perderam, pararam de escutar. Então decidi não voltar mais ao Japão por um tempo, abrir espaço para outras residências, dar tempo para o público de lá entender a diferença de quem está de fato tentando tocar algo mais profundo com sua música. A indústria estava se tornando mais comercial e as pessoas se aproximavam de diferentes estilos de música. Minimal estava mais popular, e eu decidi não voltar ao país por quatro anos. Parei de ir em 2006 e voltei em 2010. Esse tempo eu usei para criar músicas que eu pudesse levar ao Japão em 2010, tendo em mente que essa música precisaria estar passos gigantes a frente e ser algo que eles nunca ouviram antes. Em quatro anos fiz centenas e centenas de tracks para tocar naquela noite que eu voltei ao país, no ano novo em 2010.
Esse foi o começo do nosso projeto Sleeper Wakes. Estou no décimo capitulo do álbum, usando as ideias desses quatro anos para as tracks, espero que em setembro eu consiga lançar. Não é exatamente meu trabalho ou situação de minha carreira favorita, porém é de fato uma das coisas mais importantes que eu tive que fazer para re-injetar novas ideias e nova vida para a música que eu estava criando, para deixar as pessoas saberem que nós estávamos longe de exaurir todas as ideias.
Outros importantes que vieram desse processo são os álbuns Free Fall Galaxy e The Jungle Planet, mas são historias de ficção científica, eu toco a história com música.
Isso tudo aconteceu longe do público, provavelmente o resto do mundo não sabia que eu não estava mais indo ao Japão, mas eu usei isso como um marcador de tempo para criar um corpo de trabalho diferente e distante de tudo o que eu já havia criado. Esse tipo de coisa acontece de tempos em tempos. Às vezes eu paro de usar a 909 e começo a utilizar outras máquinas, porque senti ser a hora de fazer isso, ou paro de usar o sintetizador ou multi-track recorders, acho que é algo comum na carreira de qualquer produtor.
HM – Quais os seus instrumentos preferidos em estúdio?
JM – Ahm, livros (risos)! Livros sempre foram uma parte importante da atmosfera do estúdio, e eu coleciono muita literatura de ficção científica, que estão sempre por ali, perto das máquinas. Eu leio enquanto faço música, o tempo todo. Então acho que antes da drum machine, o livro é o instrumento mais interessante que eu uso.
HM – Posso fazer uma pergunta pessoal? Quantas 909 você tem? Já que elas são peças tão importantes em suas apresentações…
JM – Tenho 3. Uma máquina em cada estúdio (Miami e Paris) e uma para performances clássicas porque soa melhor que os outros. Eles são diferentes porque são máquinas velhas, tem certas peculiaridades que fazem com que soem distintas. Uso uma para gravar e uma para live performances, cada um para uma parte do trabalho…
HM – Você é a maior influência para muitos artistas. Quem são as suas? Além dos livros, claro.
JF – Muitas pessoas! Todos que escolhem música como carreira são sortudos. Eu me considero alguém de muita sorte. Quem se torna expert em algo, aperfeiçoando sua técnica, são grandes influenciadores. Não quero dizer exatamente quem, mas pessoas que sabem da responsabilidade em usar a criatividade para guiar outras na direção certa, como diretores de filmes, cientistas, escritores, e qualquer um capaz de abrir a mente das pessoas.
HM – Qual é o seu foco, hoje em dia, além dos novos trabalhos que já falamos aqui?
JM – Bem, eu estou no meio da construção de uma nova biblioteca, estou fazendo um re-design de como funcionará; preciso que seja mais eficiente para encontrar informações. Os estudos parecem estar crescendo mais na direção teorética e hipotética do “e se?”, não de ciência espacial. Estou tendo um interesse crescente em opções alternativas (risos) em geral. Em outros tipos de realidades. Outras maneiras para imaginar as coisas que nós conhecemos.
HM – O Brasil está ansioso para te receber no Dekmantel! Está planejando algo especial para o seu retorno ao país?
JM – Sim, será muito especial. Há muito espaço para experimentação e exploração no som durante esses eventos. Eu estou meio que de férias e não parei para pensar no que pode acontecer. Mas, partindo desse ponto, eu vou começar a coletar material ou criar algo para levar ao Brasil.
HM – Você tem um relacionamento especial com o Brasil, não tem? Mas faz tempo que você não vem…
JM – Sim, eu vou ao Brasil há muitos anos, às vezes para passear, às vezes para trabalhar. Faz bastante tempo, porém, que não vou, e estou curioso para ver como está progredindo. Venho escutando histórias incríveis sobre o que está acontecendo. Muitos DJs de Detroit estão tocando aí nos últimos 12 meses, então algo tem que estar acontecendo e eu estou bem interessado para observar.
HM – Você criou o EP Niteroi baseado em experiências que viveu no Brasil, certo? Qual é exatamente a ideia por trás dele?
JM – A ideia veio de uma teoria conceitual que eu estava trabalhando há muitos anos. Sendo um grande admirador da arquitetura e visões de Oscar Niemeyer, eu estava curioso sobre a teoria e a construção de Brasília. Eu me perguntava se as estruturas futurísticas e minimalistas no coração da cidade desempenharam algum papel no psicológico nas pessoas que moram na capital e região. Imaginando que o efeito da arquitetura resistente, temporária e extrema do tempo e da natureza, nos primeiros terráqueos em planetas vizinhos e na lua, poderiam ser similares, a forma como a vida se comporta dentro desses elementos influencia em como as pessoas pensam e vivem.
As formas utilizadas por Niemeyer em seus designs, afetam as preferências das pessoas? Quando estão decididas a comprar um aparelho doméstico, tipo uma cafeteira, prefeririam o modelo mais elegante, obscuro ou o modelo tradicional (em contraste)? Em essência, a arquitetura faz as pessoas se sentirem mais “futurísticas”? Ou isso se torna uma lembrança de ideias interessantes, mas falidas, de um passado?
Muitas pessoas também criam e se misturam com ambientes canônicos, como essa mistura afeta a identidade do país?
Tentando descobrir todas essas questões, criei um projeto onde eu teria que morar um tempo na cidade, trabalhar na cidade, em alguma loja de departamentos, para interagir com compradores e observar sus hábitos e compras. Também discuti a ideia com a diretora de filmes francesa Claire Denis, para viajar comigo até o Brasil e colaborar no conceito.
Com isso, eu criaria um projeto que poderia exemplificar como os humanos se adaptam em ambientes externos à nossa natureza. Com a falta de cores e formas previsíveis, humanos poderiam criar suas próprias paletas de cores mentalmente, o que poderia levar a repensarmos nossa abordagem na sociedade e espaços de vivência.
O EP Niteroi foram amostras de esboços de sons que comecei a fazer em preparação. O projeto ainda tem que se tornar real, mas eu quero que isso aconteça na primeira oportunidade de materializá-lo.
HM – Muito interessante! Para finalizamos, que outros projetos, ainda não falados aqui, você está envolvido atualmente?
JM – O Planets ocupa a maioria do nosso tempo, mas está crescendo o projeto Close Encounters of the Fourth Kind, que lancei em Paris há alguns meses, baseado em um filme de 1977. Mas ele acontece após do final do filme. É tipo uma continuação. O último show foi em Belfast, na Irlanda. Aí tem uma banda de fusão eletrônica com Jazz que eu criei com mais três músicos, chamada Spiral Deluxe. Estamos nos preparando para uma tour na primavera, está se desenvolvendo rapidamente. Tem também alguns outros álbuns… estou constantemente trabalhando em muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Às vezes é difícil de priorizar, mas dá para dizer que estaremos muito ocupados em 2017 e 2018.
Foto de abertura: João Messias
Tradução: Flávio Lerner, Gabriela Loschi e Georgia Kirillov